quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

CRÍTICA: A FORMA DA ÁGUA


“Incapaz de perceber a Tua forma, eu te vejo ao meu redor”

Existe uma delicadeza inerente que atravessa a obra de Guillermo del Toro e denuncia no diretor um carinho especial pelos párias, os diferentes e estigmatizados - mais do que isso, há no cineasta uma vontade de testemunhar por eles e atestar que não é a aparência ou a natureza do indivíduo que o definem como digno de amor ou como merecedor da alcunha de monstro. Quando decide narrar o romance entre Elisa (Sally Hawkins) e o Homem Anfíbio (Doug Jones), o realizador mexicano faz de A Forma da Água o seu filme mais óbvio sobre o tema, ao passo em que relembra porque se consagrou um mestre criando histórias de fantasia que fogem da puerilidade habitual desse gênero e se entregam a um olhar mais adulto - não porque insere sexo e violência nas suas fábulas, mas sim porque adota sobre esses elementos a mesma perspectiva amadurecida, recorrentemente melancólica e, por vezes, brutal com que trata as demais características mágicas e sobrenaturais dos universos que concebe. Pois, no ímpeto de criar e observar contos de fadas através do ponto de vista das figuras relegadas às sombras deles, acaba construindo uma estranheza delicada que força o espectador a encontrar beleza onde antes era certa a repulsa e o medo. Assim, não deixa de ser poético (e nem um pouco por acaso) que seu novo projeto seja também uma declaração de amor à técnica do Cinema, que igualmente às criaturas inventadas por del Toro, é constituída tanto de luz quanto de escuridão.

Então é flagrante que ele escolha como protagonista uma mulher muda que se alia a outra que é negra, Zelda (Octavia Spencer), e ainda ao pintor homossexual Giles (Richard Jenkins) para salvar de um laboratório governamental o Homem Anfíbio, tendo de driblar para isso o perigoso chefe de segurança do lugar, Strickland (Michael Shannon) - pois dessa forma o filme articula claramente uma união de minorias contra o homem, branco, heterossexual, religioso e conservador. Mas se a ideia geral em si é óbvia, o que a torna tão eficiente é que del Toro parece realmente entender o cerne do conflito - não é o preconceito pelo preconceito que cria o ódio enraizado do vilão, mas a ignorância e o medo. Uma pessoa muda, por exemplo, muitas vezes é classificada como deficiente física por precisar se comunicar e interagir com o mundo de uma forma diferente da maioria - então por que quando um estrangeiro entra no país falando uma língua completamente diferente e alheio ao idioma local, isso não é considerado uma deficiência também? Levando ainda em conta que cada forma de comunicação carrega consigo toda uma cultura de hábitos e entendimentos diferentes sobre o mundo, deficientes não seriam então aqueles incapazes de se adaptar à diversidade?

Afinal, o mesmo pode ser dito da cor de pele de Zelda, da orientação sexual de Giles ou da natureza do Homem Anfíbio - são formas, comportamentos e configurações de corpos diferentes das usuais que padronizamos como as “corretas”, e que proporcionam aos indivíduos que as carregam experiências de vida diversas. A pergunta que del Toro e a roteirista Vanessa Taylor levantam é: por que não permitir que todas essas diferenças inundem o nosso universo pessoal? Que amarras absurdas são essas que colocamos nas pessoas ao nosso redor e em nós mesmos que predispõe um tipo de amor delimitado pela composição dos corpos, pelo modo que eles se expressam ou até pelo lugar de onde eles vieram? A água esverdeada onde encontramos Elisa pela primeira vez seria o símbolo dessa atmosfera de aceitação e liberdade? Pois não por acaso, é submersa nela que a moça se masturba e onde mais tarde ela mergulha para se unir enfim ao seu amado. O design de produção, junto ao diretor de fotografia Dan Laustsen, preenchem quase todas as imagens do longa com algum tom de verde, e o contraste fica a cargo do vermelho que passa a emergir aos poucos na roupa da protagonista, também vestindo a sala de cinema sobre a qual fica o seu apartamento. Aliás, é curioso que o mesmo vermelho que remete à paixão também seja um arauto do perigo - é a cor do sangue e da violência, tão presentes nesse universo úmido quanto o amor.

E Guillermo del Toro usa aqui ao máximo as potencialidades da sétima arte para contar a sua história - nesse sentido é quase uma piscadela para o espectador que a “base” sob os pés de Elisa seja um Cinema. Ele e Dan Laustsen, por exemplo, brincam com a luz e a tornam subjetiva aos personagens, aqui trazendo Elisa com uma faixa de luz estrategicamente colocada sobre os olhos molhados de choro, ali revelando o Doutor Hoffstetler (Michael Stuhlbarg, incapaz de ser menos do que excepcional mesmo quando em papéis menores) surgir das sombras inesperadamente - isso sem contar o momento mais escancarado (e belissimamente esquisito) que traz a heroína imaginando um número musical da Hollywood clássica em preto e branco ao lado de seu amor escamoso. Inclusive, del Toro não deixa de permear a narrativa com inserções espertas de filmes e músicas que não só estão contextualizados com a época (os anos 1960), como também com a temática.

Para dar ao conto o tom de fábula, del Toro concebe aquele mundo de forma lúdica, trazendo funcionários do governo com cortes de cabelo retos, espiões que se encontram em bares durante a noite e pessoas com comportamentos caricatos adversos - o homem que leva balões no ônibus, a colega de Elisa que sempre reclama da fila de bater o ponto, o dono do cinema que vive para alardear que o lugar não é frequentado por ninguém etc. Esses recursos e a ambientação quase sempre noturna garantem que o prédio habitado por Elisa tenha sempre esta aura mágica, que remete diversas vezes aos microuniversos de filmes como Delicatessen e O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. E isso contrasta com a casa ensolarada e multicolorida da família de Strickland, que parece saída de um comercial da Coca-Cola na década de 1960, com direito a uma esposa modelo e devota ao marido e um par de crianças imaculadamente arrumadas. Michael Shannon, aliás, faz um trabalho incrível ao romper com essa ilusão e revelar no chefe de segurança comportamentos machistas, abusivos e recorrentemente racistas - traços também simbolizados pelos seus dedos remendados, que vão gangrenando mais com o passar do tempo. E quando o flagramos lendo um livro de auto-ajuda, fica claro que sua vilania provém da incapacidade de lidar com todos os diferentes tipos e opiniões ao seu redor, e do medo de um dia ser tratado da mesma forma que dispensa a eles.

Entretanto, é Sally Hawkins quem consegue ser a intérprete mais expressiva em cena, mesmo sem poder falar. Elisa impõe o tom do que diz na intensidade dos seus gestos, e seu olhar frequentemente dispensa qualquer frase. Ela parece querer tocar em tudo ao seu redor, denunciando seu olhar diferenciado sobre o mundo a sua volta, além de revelar uma simplicidade natural de sua personalidade em pequenas ações, como ao colocar seu chapéu na janela do ônibus para escorar a cabeça, ou no modo como dispõe os ovos na beira de um tanque. E o carisma da personagem só aumenta quando Hawkins tem a chance de interagir com seus colegas de cena, especialmente Richard Jenkins, que oferece uma performance delicada e tocante como o vizinho e amigo da moça - e o pequeno sapateado que dividem em certo instante diz mais sobre a relação dos dois do que qualquer diálogo seria capaz de expressar.

E se os monstros criados pela ficção quase sempre serviram de símbolo para algo exterior às obras que assombravam (os zumbis já levantaram a bandeira do consumismo desenfreado, o Godzilla já devastou as cidades no Japão assim como as bombas nucleares o fizeram também, e o próprio Frankenstein é o estandarte falho da fragilidade masculina inerente provinda da sua incapacidade de gerar vida), a criatura aquática de del Toro (vivida por seu parceiro habitual  Doug Jones, incrivelmente expressivo sob a pesada e excelente maquiagem) parece existir para nos lembrar de um problema muito mais básico, universal, óbvio e, ainda assim, tristemente contemporâneo (tanto aos anos 1960 quanto aos atuais): intolerância. Nem sempre os seres que habitam a escuridão são ruins apenas por isso, pois muitas vezes eles estão lá porque esse é o lugar para onde foram marginalizados. As mulheres, os deficientes, a comunidade LGBTQ e as diferentes cores de pele, mas também aqueles de diferentes religiões, opiniões políticas e os que sofrem com a pobreza ou a depressão - não deixa de ser simbólico, inclusive, que ao entrar em um breve confronto com o Homem Anfíbio, Giles acabe com os pulsos cortados.

É estranhamente adequado, portanto, que nos dias de hoje tenha sido necessário um monstro para simbolizar aquilo de que mais precisamos: amor. Pois, por mais piegas que seja a mensagem, é apenas enxergando as pessoas para além de suas formas, que as teremos todas ao nosso redor.

Nota: 10/10



Um comentário:

  1. No resultado uma surpresa ao ver que o filme funcionou de forma maravilhosa pela grandíssima mescla, acertada, de humor, entretenimento e boníssima animação. Michael Shannon fez um ótimo trabalho no filme. Eu vi que seu próximo projeto, Fahrenheit 451 será lançado em breve. Acho que será ótimo! Adoro ler livros, cada um é diferente na narrativa e nos personagens, é bom que cada vez mais diretores e atores se aventurem a realizar filmes baseados em livros. Acho que Fahrenheit 451 sera excelente! Se tornou em uma das minhas histórias preferidas desde que li o livro, quando soube que seria adaptado a um filme, fiquei na dúvida se eu a desfrutaria tanto como na versão impressa. Acabo de ver o trailer da adaptação do livro, na verdade parece muito boa, li o livro faz um tempo, mas acho que terei que ler novamente, para não perder nenhum detalhe. Sera um dos melhores filmes de ficção cientifica acho que é uma boa idéia fazer este tipo de adaptações cinematográficas.

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