sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

ANIMAIS NOTURNOS



Constantemente preferimos a versão romantizada de um evento, ou mesmo das pessoas, e esquecemos que na maior parte do tempo a vida supera com folga a ficção em criatividade – e se você tem problemas para acreditar nisso, reveja o ano do Brasil em 2016 (ora bolas, reveja o ano no mundo!). Animais Noturnos é um filme que compreende essa dinâmica da nossa percepção da realidade com os fatos, e usa de sua própria narrativa para ilustrar o quão sujeitos estamos à subjetividade particular – e se forçar o espectador a repensar a questão da perspectiva já seria angustiante o suficiente, a atmosfera densa criada pelo longa ainda busca causar desconforto com frequência, assim como a arte produzida por sua protagonista.

Afinal, é já brincando com esses conceitos entre realidade e perspectiva que somos inseridos no projeto, quando mulheres completamente fora do padrão de beleza social exibem alegres seus corpos nus em um cenário alegórico de vaudeville, enquanto a trilha dramática de Abel Korzeniowski reforça que aquilo trata-se de uma visão dramatizada e simbólica (e realmente não interessa o que está simbolizando, apenas que é). Baseado no best-seller de Austin Wright, a trama nos leva a conhecer a artista por trás dessa intervenção, Susan (Amy Adams), que está distante em seus pensamentos, provavelmente ansiando por retornar para a casa luxuosa em que vive, e questionar o marido (Armie Hammer) sobre sua ausência na exposição – e se isso pode ser inferido, é porque a essa sequência são intercalados planos de uma rodovia, e que mais tarde se repetem quando Susan de fato se encaminha para casa. Assim, outra característica do longa já fica estabelecida desde o início, a de que a direção irá usar ativamente da linguagem para traduzir os dilemas de seus personagens.

E não deixa de ser interessante que, apoiado nesses recursos, esse seja apenas o segundo filme de Tom Ford, mais conhecido por seu trabalho como estilista e que, antes, só dirigira o ótimo, porém, mais convencional, Direito de Amar. Aqui a narrativa se divide em dois arcos bem definidos, mas cuja dinâmica, formada pela montagem e direção, exprime reflexões mais complexas, como apontei no primeiro parágrafo. Por um lado temos Susan, uma artista plástica em crise com seu casamento e o rumo que sua vida seguiu – apesar da opulência de sua rotina, a fotografia e os cenários que habita traduzem os sentimentos da personagem com palhetas dessaturadas e espaços escuros, amplos e vazios. Por outro temos Tony (Jake Gyllenhaal), o protagonista e alterego escrito por Edward (Gyllenhaal também) para um romance chamado Animais Noturnos. Ex-marido de Susan, ele volta a entrar em contato com ela, depois de muitos anos, para que seja a primeira a ler seu manuscrito. Conforme Susan (a pessoa) avança na trama vivida por Tony (o personagem), mais desvendamos a verdadeira natureza do relacionamento entre Edward (a pessoa) e Susan (a personagem que ele, anos atrás, idealizou na sua cabeça).

Apesar de a história do livro ser aquela que é romantizada, o mundo de Tony é perceptivelmente mais cru, sombrio e violento do que aquele quase caricato em que vive Susan – e se Ford adota a câmera de mão e uma fotografia granulada e cheia de contraste num dos segmentos, no outro investe em planos mais estabilizados, em enquadramentos elegantes e até em lentes grande-angulares que distorcem e transfiguram uma sala de reuniões, por exemplo, em algo saído de um filme de Terry Gilliam. Aliás, essa diferenciação jamais é algo que o cineasta tenta deixar na sutileza, e traz um dos amigos da artista aconselhando-a quase de maneira metalinguística: “Nosso mundo é menos doloroso”. Tão impregnado com metáforas é a sua realidade, que desde as obras de arte pelas quais passa (um boi alvejado por dezenas de flechas aqui remete à morte do seu eu mais natural, enquanto um quadro que grita “Vingança” ali, expressa seus temores em relação aos objetivos do livro de Edward), até um beijo de canto e constrangido que troca com o marido, tudo no seu arco parece querer significar, berrar por conteúdo e, assim, traduz perfeitamente o conflito da personagem.

Deste ponto de vista, Amy Adams vive Susan com uma frieza e austeridade corretas, confiando que a atmosfera criada por Ford complementará a sua performance - e suspeito que não seria qualquer intérprete que entenderia essa necessidade do projeto. Enquanto isso, Jake Gyllenhaal continua comprovando ser um dos atores mais versáteis de sua geração ao encarnar tanto Tony quanto Edward de formas ligeiramente diferenciadas (e note que, apesar de ambos partirem da doçura, revelam-se figuras menos ou mais intensas, menos ou mais lenientes). Os contrastes entre os protagonistas também são ressaltados pela montagem de Joan Sobel, que contrapõe aqui e ali as composições da direção, como ao trazer Susan e Tony deitados para lados opostos em uma cama, sob uma palheta também oposta em suas cores, ou trazendo ambos sob alguma espécie de água corrente e, também, ao contrapor suas visões da mesma personagem – e se Tony enxerga o cadáver da filha em um terreno baldio, ao lado de outro corpo, a realidade de Susan a enxerga na mesma posição, só que viva e dormindo em seu quarto, ao lado do namorado (e note novamente como, ainda assim, a perspectiva do primeiro é menos poética do que a dela, que apenas com algumas mudanças na luz e na estabilidade do quadro, remonta a mesma imagem de maneira muito mais voltada à plasticidade).

Aliás, Ford leva tão a sério suas escolhas narrativas que resiste até mesmo ao impulso de incluir uma narração em off (voice over), mesmo quando ela seria esperada: e quando Susan abre Animais Noturnos pela primeira vez, admito que esperava, pela convenção, que a voz de Jake Gyllenhaal começasse a ler algumas das linhas ali antes de sermos levados até o arco do livro. Ao contrário disso, porém, o cineasta nos nega qualquer imaginação prévia e nos mergulha diretamente na perspectiva dela daquela história - assim, não surpreende que a esposa de Tony, Laura, seja vivida por Isla Fisher, que divide grande semelhança com Amy Adams, reforçando que a artista está projetando naquele romance a sua própria vida.

O que, em última análise, a estabelece como protagonista indiscutível do filme, pois é a sua visão subjetiva da própria realidade e do manuscrito a que acompanhamos, o que torna sua versão dos flashbacks com Edward um tanto mais interessantes (e questionáveis), já que trazem o jovem otimista idealizando-a também (seria Susan idealizando Edward idealizando a si mesma...?) – e essa é a segunda vez em 2016 que Amy Adams lidera um filme que assume o seu ponto de vista como recurso narrativo (isso também ocorre em A Chegada). Animais Noturnos seria "só" por isso, um exercício bem sucedido de linguagem, entretanto, também é hábil ao construir tensão - principalmente no arco de Tony, onde encontramos os personagens de Aaron Taylor-Johnson (o revoltante Ray) e Michael Shannon (cada vez mais um dos melhores atores em atividade atualmente). Desse modo, disposto ou não a sair de sua zona de conforto para abraçar outras perspectivas, o espectador é incomodado de qualquer forma, pois se ignoradas as suas reflexões, ainda resta no filme uma experiência angustiante de expectativa por resolução, como esperar em um restaurante por alguém que você não sabe se vai aparecer. 



NOTA: 9/10


Um comentário:

  1. Adoro seus textos e críticas. Não sabia que ainda existiam pessoas com um cunho linguístico tão avançado na nossa nova geração.
    -H

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