quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

ANOMALISA


O ser humano tem um potencial hegemônico inegável. Transmitir ao próximo seus próprios gostos, seu jeito de pensar e fazer as coisas é uma característica que provavelmente evoluiu com a nossa espécie devido ao medo de nos sentirmos alienados, descolados do todo e, portanto, desabrigados das proteções oferecidas pelo convívio social. Não quer dizer que sejamos todos necessariamente autoritários e intransigentes, mas é palpável a facilidade com que podemos sê-los. Subproduto de uma necessidade evolutiva, esse comportamento seria o causador de outros efeitos colaterais como a distorção da realidade pessoal, que nos faz recorrentemente perceber qualquer informação através dos nossos próprios filtros, sejam eles culturais, emocionais, situacionais, etc. Afinal, o mesmo instinto que nos impulsiona a querer disseminar nossos modos de vida aos que o ainda não o praticam, também busca nos bloquear o mesmíssimo tipo de influência vinda de outras pessoas.


Acostumado a traduzir as estranhezas de uma crise pessoal de um personagem no universo que o rodeia, o roteirista e diretor Charlie Kaufman realiza aqui em Anomalisa, um estudo simples dessa nossa característica tão egoísta, que acerta principalmente ao se mostrar objetivo quanto a um assunto que já é complexo por princípio. E seu primeiro acerto é a escolha de sua abordagem em uma animação stop-motion, que por si só já adianta o teor irreal da distorção sofrida por Michael Stone (dublado com a antipatia certa por David Thewlis), um escritor de auto-ajuda do ramo comercial que perdeu o interesse na sua própria vida, do seu casamento, da sua família, enxergando a sua volta apenas repetições. Até que, durante uma viagem em que iria palestrar, ele conhece Lisa (voz de Jennifer Jason Leigh), tão diferente de todos que ele não resiste em flertar com a moça.

A partir daqui, gostaria de comentar alguns detalhes do filme, e portanto, decreto aberta a zona de spoilers:

O Cérebro, a cabeça, a mente, o centro pensante dos personagens escritos por Kaufman não são elementos estranhos aos seus roteiros, e não raramente essas figuras visitam o próprio intelecto, suas próprias memórias, o ponto de vista de outras pessoas, ou cavam tanto em suas realidades que acabam encontrando o cerne de si mesmas - basta que se assista Quero Ser John Malkovich, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, e Sinédoque, Nova York. Aqui, esse “centro de comando” é o quarto de hotel em que Michael é hospedado, e prova disso é a pintura abstrata pendurada nele, cujas formas lembram neurônios. Não por acaso é o lugar que se torna o seu refúgio durante um pesadelo, e de onde vemos um outdoor se transformar na propaganda dizendo “É do tamanho de um Zoológico”, frase que ele ouve mais cedo e que certamente agrega-se ao seu imaginário.

Também é ali que Michael escuta pela primeira a voz de Lisa – a qual Jennifer Jason Leigh confere uma ingenuidade acertada. Só para mais tarde, ser também dentro do quarto que ele testemunhe as suas próprias imposições sobre ela transfigurando a mulher por quem estava apaixonado, em apenas mais um dos rostos iguais com que ele não consegue evitar de enxergar todo mundo. Rostos de homens, claro, assim como a voz masculina de Tom Noonan, que o escritor escuta sair das bocas do taxista, da ex-namorada, da mulher e mesmo do filho. E o indício de que deixou a primeira companheira pelo mesmo problema que o aflige hoje, implica que sua visão egoísta de mundo é retro-alimentada, renovando-se constantemente porque Michael jamais busca a solução em si mesmo, preferindo relegar a culpa a todas as outras pessoas. Assim, no final, a música que acompanha os créditos, None of Them Are You, escrita e cantada pelo próprio Charlie Kaufman, parece ser dedicada pelo protagonista a ele mesmo, e não para uma pessoa que almeja conhecer. Afinal, pouco adianta buscar alguém diferente de si mesmo e do resto se deixamos que aquele potencial hegemônico intrínseco a nós, cegue-nos – como a luz que literalmente faz isso em certo ponto com Michael – e só nos permita enxergar os próprios umbigos.



NOTA: 10/10     


Nenhum comentário:

Postar um comentário