domingo, 1 de novembro de 2015

SICARIO: TERRA DE NINGUÉM


O cineasta canadense Denis Villeneuve, surgido apenas na última década, com um pequeno, mas impressionante currículo, já se estabeleceu como sinônimo de produções densas e inteligentes. Exibindo sempre uma confiança admirável no intelecto do espectador, seus filmes raramente são óbvios ou fáceis, recheados de elementos simbólicos e também diegéticos (aqueles inseridos no universo da trama e dos quais os personagens estão cientes) que são colocados lá para que o enredo e seus significados possam ser desvendados não só pelas quase sempre inquietas figuras que os protagonizam, como também pelo público do lado de cá da tela, que não consegue evitar ficar nervoso, tamanha a tensão que o diretor consegue transmitir cada vez melhor.


Com toques de A Marca da Maldade, de Orson Welles, Sicario: Terra de Ninguém, a nova investida de Villeneuve, também relata a história de um oficial destacado para trabalhar na fronteira dos Estados Unidos com o México. E se aquele clássico do Cinema Noir apresentava um espetacular plano sequência de abertura que culminava em um trágico desfecho, aqui, o realizador, apesar de não ser adepto dos planos que se demoram em tela, constrói sequências que se esticam através da montagem. Justificando-se não só pela tensão que cria ao tratar cada elemento envolvido com cuidado, mas também ao pintar um quadro tridimensional dos personagens e de toda a situação em que estão inseridos. As cenas no longa-metragem de Denis não são criadas para desenvolver o plot e seus habitantes, mas sim eles é que são desenvolvidos e criados em detrimento das cenas.

E em tempos que no Brasil a prova do Enem está abordando o feminismo, é impossível conter um sorriso ao se constatar que o oficial escolhido é uma mulher. E o melhor, que o papel não exigiria que assim o fosse. Kate (Emily Blunt) é uma protagonista que facilmente teria sido um homem em algum outro filme, já que o seu sexo não interfere na narrativa. E justamente esse detalhe – é uma atriz quando poderia ser um ator – que torna a escolha tão lúcida e acertada, além de, sim, inovadora no meio cinematográfico. Blunt assume então o arquétipo, normalmente masculino, tão comum no Noir: do investigador soturno, obstinado com os seus ideais, e dono de mágoas passadas. Inclusive é divertido perceber como Sicario busca inserir outros dos arquétipos do gênero de forma sutil, e então temos uma autoridade de passado misterioso, o bonachão de moral dúbia, a figura pura, mas tragicamente envolvida com os bandidos, e até mesmo uma espécie de Homme Fatale™ (Yuri Correa, todos os direitos reservados), invertendo um papel que se construiu na feminilidade.

Porém, os arquétipos não são os únicos a serem atualizados, e a própria fotografia do “Cinema Noite”, elemento tão marcante e determinante de sua concepção, é também repaginada aqui pelo mestre Roger Deakins – em sua segunda colaboração com Villeneuve. Dotada de um preto e branco contrastado, composto de sombras alongadas e laterais, que reservavam o escuro para as figuras ameaçadoras e a luz para aquelas de maior fragilidade, a estética Noir é transposta por Deakins para cá através de seus já famosos planos em contra luz e silhuetas. Além de ser admirável que case sua iluminação normalmente difusa com as exigências de alto contraste entre luz e sombra do estilo – em determinado momento Kate está posicionada no único ponto iluminado de um aposento, enquanto um frio assassino conversa com ela de dentro de uma profunda escuridão. E devo destacar que é memorável e poderoso o plano que traz um grupo de soldados mergulhando em um horizonte negro logo abaixo de um poente vermelho sangue.

Não o suficiente, como de costume, Villeneuve não resiste em pincelar momentos de significado simbólico, exclusivos para o espectador, como aqueles recorrentes que enfocam a abertura de alguma cortina em alguma janela de algum lugar, que deixa passar pela fresta um raio de sol dourado. Ora, quando assistimos a rima final desses planos ao encontrar a própria Kate do lado de fora de uma varanda, por onde as cortinas deixam entrar agora uma pálida luz cinzenta e fria, é que percebemos que antes as frestas simbolizavam a esperança inabalável da policial nos seus ideais e moralismos. Como se, colocada do lado de dentro dos ambientes, ela conseguisse ainda enxergar uma nesga de sol do outro lado, e uma vez lá fora, ela enfim conseguisse ver que tudo aquilo que ela considerava ser definido, luz e sombra, na verdade tratava-se de uma coisa só: um grande cinza indecifrável em que nem tudo é só ruim, ou só bom.

Uma percepção que Villeneuve, em outro exercício de genialidade, vai inserir na figura de um policial mexicano, do qual eventualmente temos vislumbres da rotina caseira, com o filho e a esposa. E é apenas no clímax em que descobrimos sua verdadeira função na trama, percebendo o quão importante era a sua introdução tão cedo. Uma vez que boa parte do roteiro aborda o embate ideológico de Kate com os seus superiores, Alejandro (Benicio Del Toro, econômico e por isso mesmo, brilhante, TEM que ser reconhecido na temporada de premiações) e Matt (Josh Brolin, divertido), acompanhar somente o time de protagonistas acabaria dirigindo o filme para uma visão unilateral que contemplaria apenas o ponto de vista dos oficiais, por mais que a agente insistisse em considerar o fator humano pelo lado dos traficantes também. Pois bem, para não alienar o espectador e poder colocá-lo a par do ponto de vista de Kate, é precioso que Sicario resolva então acompanhar esses momentos rotineiros do policial mexicano, levando-nos a dimensionar que por trás de cada um daqueles “capangas” mortos friamente pelo time de “heróis”, existe uma família, uma história e até mesmo toda uma situação que não fazem deles necessariamente maus. E se o longa já se mostrava atual na escolha de uma mulher como cabeça do elenco, torna-se então relevante com esse esforço de sensibilização que praticamente estapeia na cara todo aquele que enche a boca pra dizer coisas como “bandido bom é bandido morto”, ou ainda os que engrossam as fileiras de corruptos como Cunha na luta pela redução da maioridade penal.

Apresentando ainda um design de som estudado, a produção se dá ao luxo de investir minutos na apresentação de Juarez, a cidade que vai ambientar boa parte da ação, que é antecipada por planos das estradas que até ela levam, enquanto uma trilha opressiva e repleta de graves vai subindo ao fundo, até se transformar praticamente em rugidos que se complementam com a entrada ensurdecedora de helicópteros em cena, completando a introdução do lugar como se fosse uma monstruosa besta, viva e perigosa. Uma associação de personalidade que remete diretamente aos exercícios de Spielberg em Encurralado e Tubarão, cineasta que obviamente deve ter inspirado Denis não só nesse sentido como também na construção de tensão, que chega a ser quase insuportável em certos momentos. E reparem como os sons de disparos de uma arma equipada com silenciador durante o clímax, soam muito mais altos do que aquelas sem abafador algum, simbolizando a determinação e a ferocidade do atirador.

Pouco gentil com o seu espectador, Sicario se encerra deixando-o aflito, perturbado e pensativo. É uma pancada dura que atinge onde o público menos gosta de ser cutucado quando dentro de uma sala de cinema. Apresentando pistas que levam a verdades incomodativas e sentimentos conflitantes, tão cinzentos quanto o céu que passa a cobrir Kate. Não é um mundo fácil de se definir, onde assassinos são maus e policiais são bonzinhos. Para habitar ele, da mesma forma que é para se habitar o filme, exige-se constante observação e raciocínio. Que Denis Villeneuve continue a trazer obras tão amargas e, por isso mesmo, tão memoráveis como essa.



NOTA: 10/10


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