sábado, 24 de outubro de 2015

PONTE DOS ESPIÕES


Steven Spielberg está voltando. Agora, o que isso significa?

Spielberg sempre foi um cineasta extremamente emocional. Não por acaso acabou sendo mitificado - porque nem "eternizado" sintetiza suficientemente bem o peso que o seu nome passou a carregar com os anos - justamente por conseguir criar sentimentos, personagens e momentos tão intensos e marcantes que, a cada filme que fazia, parecia nascer um novo clássico – e de fato, alguns nasceram. Seu grande apelo sentimental, fosse para evocar a tensão, a empolgação, a tristeza, a comoção ou o riso, sempre lhe foi intrínseco, e prova disso é o insucesso narrativo de A.I.: Inteligência Artificial, que se por um lado funcionava na racionalidade de Stanley Kubrick (que concebeu o projeto logo antes de falecer), cedia a tentação do diretor de E.T. - O Extra Terrestre e A Lista de Schindler ao não conseguir evitar um adendo final de cunho afetivo, que praticamente arruinou todo aquele projeto. A verdade é que Spielberg é incapaz de ser pragmático ou racional como cineasta, o que não é algo ruim, o problema é que o realizador pouco a pouco deixou que suas tendências emotivas, antes poderosas propulsoras de obras memoráveis, tornarem-se descontroladas, abusivas e intrusivas, e o diretor que antes era referência em como fazer cinema, passou a ser o cara que dirigiu o enfadonho Cavalo de Guerra e o mediano Lincoln, sem controle algum do tom ou do andamento de seus filmes.


O mesmo Spielberg que afirmou ter estado deprimido durante a produção de O Mundo Perdido: Jurassic Park, porque o projeto não lhe apresentava desafios, poderia explicar essa sua recente baixa. E chamo de baixa sim, não ligo nem um pouco para quantos Oscars (ou indicações a ele) seus dois últimos live action tenham recebido – que se fosse pra cotar qualidade em prêmio, eu teria que dizer que Tom Hooper (premiado por O Discurso do Rei) é um bom diretor, o que é uma terrível mentira. O fato é que um cineasta responsável por tantos marcos do cinema moderno, já não encontrava mais obstáculos e, portanto, motivações para conceber as grandes obras a que estava acostumado a dirigir. Nota-se isso claramente ao percebermos que, de suas últimas produções, As Aventuras de Tintim, uma animação na qual ele teve de lidar com a tecnologia do motion capture - ou seja, duas linguagens com as quais ele nunca tivera contato antes - é de longe a mais eficiente em anos, ao menos desde Munique, que já data de longos dez anos atrás, 2005! Por isso, enquanto absorvia Ponte dos Espiões, pensei ser apenas lógico que estivesse gostando do mais novo filme do diretor, já que ele é, de certa forma, desafiador - não de uma maneira geral, mas especificamente para Steven. Afinal, trata-se não só de uma obra de peso político, mas política em si, onde heróis e vilões se confundem, e nem mesmo há espaço para as habituais trilhas de John Williams.

Digo, Spielberg já usou o “político” antes, e muito dele foi visto em Schindler, por exemplo. Já expôs os bastidores de um atentado terrível, e de cunho político outra vez, para magnetizar o espectador com a tensão provocada por Munique. Até mesmo em Lincoln, tudo o que se via era política sendo discutida por toda a duração daquele longa-metragem. Mas Ponte é uma realização diferente, existe uma “visão”, um posicionamento por parte do diretor que, admito, como um de seus fãs confesso, me peguei surpreendido de constatar em uma obra de sua autoria. A trama acompanha James Donovan (Tom Hanks), que é chamado para ser o advogado de um espião russo capturado em solo americano, no auge da Guerra Fria. A coisa toda, porém, não passa de um teatro para que publicamente, os Estados Unidos parecessem estar dando um tratamento justo ao prisioneiro, enquanto, na verdade, o próprio juiz responsável pelo caso pouco esconde que já considera o réu culpado antes mesmo de qualquer julgamento. É quando acontece, então, de um estudante e um militar americanos serem capturados para o lado de lá do Muro de Berlim, fazendo com que a CIA envie Donovan, sob o pretexto de ele ser um civil, para a zona de tensão para negociar por baixo dos panos a troca de cativos entre as duas superpotências.

A começar pelos americanos, o longa curiosamente enfoca-os como seres mesquinhos e dissimulados, além de conservadores, já que vemos tanto os agentes do governo e da justiça como frios burocratas de opiniões severas sobre o espião, como também constatamos o povo estadunidense se transfigurar em uma massa raivosa que se volta contra o protagonista e sua “ousadia” por defender um traidor. Algo de que James tenta dissuadir todos com quem se encontra. Afinal, se o chamado Coronel Abel (Mark Rylance) nada lhes revelou até então, é porque é um patriota leal, só não ao país que as pessoas ali gostariam que ele fosse. Uma ideia que é fácil de se comprar quando Rylance faz um trabalho tão admirável construindo Abel como um homem carismático e gentil – e a própria decisão do longa-metragem em retratar um espião soviético como um personagem a ser defendido pelo espectador, já seria sozinha, uma ideia ousada para qualquer cineasta.

Porém, Steven vai um pouco além quando em uma segunda metade, a trama se concentra em território alemão, e ele tem a chance de problematizar as relações baseadas em interesses que ali se estruturam. Impregnada por uma fotografia cinzenta (concebida como de costume por Janusz Kaminski), a Berlim murada é repleta de agentes da CIA, da URSS e do próprio governo alemão que defendem cada um, os interesses diretos daqueles que representam, e noções de bondade ou maldade tornam-se obsoletas e relegadas então ao único personagem em que parece recair o “Spielberismo”: o próprio Donovan. Primeiramente receoso de pegar o caso de Abel, ao ponto em que o encontramos na Alemanha James já é um homem convicto em fazer aquilo que é humanamente certo, empreendendo arriscados esforços para garantir não só a soltura dos prisioneiros americanos, como também o tratamento adequado ao espião. E se isso poderia destoar da ambiguidade que permeia todo o resto da produção, com o desenrolar do roteiro – retocado por ninguém menos do que os irmãos Joel e Ethan Coen, o que explica algumas piadas – torna-se essencial que o personagem de Hanks torne-se uma âncora de humanidade em meio a um universo tão incerto, onde ninguém parece se importar com a pessoa ao lado e sim com sistemas cegos e cruéis que pouco parecessem sentir a adição ou a remoção de um de seus componentes.

Encarnando o advogado como um homem que assim como se esconde encolhido atrás de um carro quando é seguido por um estranho, também se posiciona com firmeza em frente a influentes burocratas do outro lado da Cortina de Ferro, Tom Hanks volta a demonstrar que é um dos mais versáteis atores de Hollywood, ainda que esteja começando a denunciar uma persona, que combina heroísmo, pragmatismo e ousadia em medidas iguais, lembrando então o seu Capitão Phillips ou Robert Langdon. E novamente, isso também não é necessariamente ruim. Ao contrário do que é, em contrapartida, a tendência de Spielberg em se alongar mais do que o devido aqui e ali. Mas essas cenas cortáveis, alongadas e normalmente melosas têm acontecido vezes consecutivas demais, e começo a achar que o cineasta já não cuida tão bem da finalização de suas produções, depositando confiança demais no seu fiel montador, Michael Kahn. Que se é um profissional criativo no ponto em que cria transições quase sempre interessantes entre um momento e outro, por outro lado é indulgente com toda uma sequência que envolve a esposa de James (Amy Ryan) apreciando-o enquanto esse se atira exausto na cama, algo que poderia ter sido facilmente limado em uma revisão final.


Ainda resquícios desse Spielberg letárgico dos últimos anos, que felizmente, parecem estar se esvaindo, dando lugar ao retorno de um dos melhores e mais importantes realizadores que o cinema já viu. E não, os apelos emocionais do diretor não são algo que incomodam, afinal, reclamar que Spielberg está sendo piegas é atestar que nunca viu ou entendeu qualquer outro filme dele. Porém, ver esses esforços flutuarem em tela sem ter a que servir, estava sendo um processo muito dolorido, então é realmente prazeroso constatar que o diretor que é referência quando se fala em “direção de cinema”, ainda está ali. Esperemos que Spielberg traga novos projetos ainda melhores do que esse, deixando para trás o que não estava funcionado. O que inclui sua frustrada e insípida parceria aqui com Thomas Newman, que tenta emular John Williams sem sucesso, já que pela primeira vez em 30 anos, o veterano compositor não é o responsável pela trilha sonora de um filme de Steven – o último longa-metragem em que não foram parceiros foi A Cor Púrpura, de 1985.


NOTA: 8/10


Nenhum comentário:

Postar um comentário