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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

SELMA



Escritos sobre as imagens do filme, surgem ocasionalmente trechos dos registros reais e oficiais da vigilância governamental feita em cima de Martin Luther King (David Oyelowo) e das pessoas envolvidas com o seu movimento, mais especificamente, aqueles referentes ao caso da cidade Selma, que dá título ao projeto, e onde King usou a população negra oprimida como fonte de catarse para alavancar o seu pedido junto ao presidente Johnson (Tom Wilkinson) por mudanças na constituição eleitoral. Usando palavras como “agitadora”, “crioulos” e “incita” para descrever Coretta King (Carmen Ejogo), os pacíficos manifestantes e o discurso do protagonista em uma igreja, respectivamente, esses registros denunciam com clareza a segregação que ainda estava impregnada no próprio sistema do governo dos EUA em 1965, mesmo que seu presidente já desde a primeira cena encha a boca para dizer que esse é um problema já superado. E essa é a parte menos revoltante de Selma, que mais tarde chega a trazer imagens de arquivo do verdadeiro protesto sobre que fala, aterrorizando minutos depois ao revelar que várias pessoas foram mortas e gravemente agredidas durante ele. Mais aterrorizante ainda, porém, é pensar que estas filmagens foram feitas há apenas cinquenta anos... E tem gente, no Brasil, que, assim como achava Johnson, pensa que o racismo e a segregação ficaram nesse passado obscuro, posicionando-se contra programas como o de cotas raciais e os demais de conscientização, como se as centenas de anos de escravidão, humilhação e restrição de direitos fossem ser curados em apenas meio século.


“Eles querem conscientizar os negros, eu digo que temos que conscientizar os brancos” diz King em certo momento resumindo eficientemente a questão pertinente levantada por Selma, que poderia facilmente glorificar o seu personagem central, o que não faz. É um homem, sim, bondoso e sábio que Oyelowo interpreta aqui, mas também um pragmático, que não se ilude e entende como funciona a fria aparelhagem governamental, sabendo jogar com ela e com a mídia, arriscando e pagando o preço de, por exemplo, ver um senhor de idade ser espancado na sua frente. O Martin Luther King desse longa-metragem encara o acontecido com dor, mas duramente, sem arredar o pé, tem sangue-frio o suficiente para saber que os direitos de milhões e de gerações futuras valem o sacrifico de alguns poucos. Mais de uma vez também o vemos preparando algum de seus famosos e eloquentes discursos, ensaiando-os, o que não só o torna mais crível como ser humano, mas também acusa nele a consciência de que seus passos precisam ser estudados e executados com segurança e precisão, algo que muitos militantes de várias causas ainda hoje desentendem e apostam na força bruta contra um sistema que se alimenta justamente deste embate direto.


David Oyelowo, assim, executa um trabalho formidável, principalmente com seu sotaque que hora expressa suas opiniões de forma polida e noutra já sussurram para a irmã pelo telefone pedindo que lhe cante uma canção para que relaxe. Situações que se diferenciam da cadência que usa para discursar, quando então conhecemos não o homem que ele finge ser, mas o símbolo que ele precisa ser. Humanizado, é possível se emocionar com a sua comoção ao conversar com o pai de um dos jovens manifestantes brutalmente assassinados, que revela que o sonho do filho era que ele pudesse votar, assim como não é difícil chegar às lágrimas ouvindo o discurso que dá como encerramento do longa, não porque é um mais tocante que seus anteriores, mas porque a esse ponto do filme, é possível entender a importância, não de King – que sim, foi importantíssimo – mas do tal “sonho” pelo qual clamava lutar, e que ainda hoje deveria ser dito com tanta veemência em praça pública quanto o era há tantas décadas atrás. O filme dirigido pela diretora Ava DuVernay e produzido por Oprah Winfrey (que aliás, faz uma ponta aqui) poderia facilmente, deste modo, se tornar maniqueísta e apelativo. Mas esses defeitos jamais chegam a se concretizar quando o que Selma usa como dispositivo para comover é apenas a verdade. A triste verdade que, neguem o quanto quiser, ainda é uma realidade a ser combatida.



NOTA: 8/10


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