sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

12 ANOS DE ESCRAVIDÃO


A arte é normalmente uma via de duas mãos: o artista e sua obra oferecem algo, mas o observador, mesmo que inconscientemente, também deve desprender algo de si próprio para que sua experiência seja completa, pode ser conhecimento, emoção, sensações... De qualquer forma, ao menos ele tem de oferecer à obra atenção, se espera que ela lhe atinja de alguma maneira, mesmo que de uma ruim. Vista assim, a arte existe graças a este tipo de reação química, esta troca de elétrons ente ser humano e criação. Porém, no que se trata do cinema, o espectador sempre foi mal acostumado por produções de fácil acesso a apenas sentar-se em sua poltrona e esperar ser comovido por aquilo que se passa na grande tela a sua frente. Um equívoco, claro, e alguns chegam a dizer inclusive que há certos filmes que são apenas para desligar o cérebro e relaxar. Eu costumo chamar longas-metragens assim de ruins, pois acredito que mesmo o blockbuster mais clichê e previsível possa oferecer algo que mantenha o cérebro trabalhando por toda a sua duração, e simplesmente não entendo o conceito de “conseguir desligar o cérebro” para qualquer coisa que seja. Posto isso, grande parte das produções que vemos semanalmente buscam de certa maneira induzir a emoção, a moral ou a lógica que querem passar com uma história ou outra - e não aponto isso como um demérito (!). Mas, de vez em quando, aparecem aqui e ali um roteiro que exige de seu observador um pouco mais; que este trabalhe em cima do que a obra oferece, seja teorizando, julgando, raciocinando, etc. Obras assim costumam gerar grande repúdio do público em geral que simplesmente prefere tramas que digam elas mesmas ao que vieram e do que se tratam, poupando assim o trabalho do espectador. O que não será o caso de 12 Anos de Escravidão, que embora apresente esta característica exigente de seu espectador, fala sobre um tema tão polêmico e acessível, que deve compensar a abordagem do diretor Steve McQueen no que tange o cativo exercido pelo filme.


Mantendo-se distante enquanto cineasta, McQueen abusa de tomadas estáticas ou com pouquíssimos movimentos, buscando não chamar atenção para si mesmo, e quando finalmente notamos que ele está realizando um longo plano sem cortes, este já está quase no final. Mas de maneira alguma isso indica frieza em sua condução, se o diretor mostra-nos algum ato atroz, é porque a narrativa exige e não simplesmente para chocar. Desta maneira cria um vácuo emocional que o público terá de preencher sozinho. Afinal, o realizador jamais julga qualquer um de seus personagens, não tenta glorificar os que ajudam o protagonista ou condenar aqueles que se põe em seu caminho, e mesmo o próprio Solomon (Chiwetel Ejiofor) não é retratado como uma vítima indefesa. Esta é a tarefa do espectador aqui, e em comparação com outros filmes que exigem este tipo de esforço redobrado, creio que este aqui pode ser ou muito exaustivo ou muito relaxante, depende, é claro, do caráter de cada um. Por exemplo, seria muito fácil comprar o personagem de Benedict Cumberbatch como um bom samaritano que se dispôs a ajudar do melhor jeito que pôde, mas isso seria ter uma visão e audição seletivas, pois se, sim, estão lá fatos que apontam sua tendência a uma boa índole, também estão aqueles que revelam seu comodismo com os absurdos a sua volta, como quando ignora o choro de uma de suas escravas.


Assim, o longa nos convida constantemente a fazer nosso próprio julgamento das figuras que desfilam por sua duração. Muitas delas, aliás, surgem na narrativa para saírem da mesma de forma tão abrupta quanto entraram, o que, ao invés de incomodar, funciona excepcionalmente para transmitir a natureza periódica da vida do escravo, que como uma mercadoria passa de mão em mão tocando pelo caminho diversas histórias e arcos dramáticos dos quais, assim como nós, ele jamais saberá o fim. Porque na vida real nem sempre o vilão se dá mal e o herói sai vitorioso, de fato, na vida real, às vezes não há um vilão definido, e muito menos um herói, e deste modo, nunca saberemos o que ocorreu ao caseiro interpretado por Paul Dano, com o comerciante de escravos de Paul Giamatti e nem mesmo que conclusão teve a história de Patsey (Lupita Nyong’o).


Baseado em uma história real, o roteiro conta sobre o sequestro de Solomon, um homem que se vê capturado por traficantes de escravos que o vendem para fazendeiros sulistas. Um deles, interpretado por Michael Fassbender, é o que mais atraí a atenção por sua natureza violenta e ao mesmo tempo conflituosa, uma vez que está apaixonado por Patsey. Edwin, no entanto, não hesita em mandar castigar, com muita naturalidade, os trabalhadores que não atingem a meta na colheita de algodão, porém, a ameaça que representa jamais fica tão clara quanto no instante em que, com o olhar fixo e perdido no escuro, escuta as explicações de Solomon sobre um boato de o escravo querer enviar uma carta, onde sua imobilidade quase que total promete um ato de selvageria iminente. Mais do que isso, com seu pouco tempo em tela, Fassbender ainda protagoniza uma curiosa disputa de poder entre seu personagem e a cruel e amargurada esposa do mesmo, esta sim, assustadora em tempo integral. Mas Chiwetel Ejiofor não fica atrás, e seu Solomon é mais do que apenas uma vítima; ele defende-se quando julga necessário e promissor, e sabe calar-se quando reconhece que seu oponente não é dado ao diálogo. Submisso e obrigado a esconder sua natureza erudita, mas jamais frágil, seu personagem é forte e cheio de imposição, o que, para um filme que não toma partidos, é importante para que ao menos tenhamos a vontade de torcer por ele.


Uma imparcialidade acertada, repetida da abordagem que McQueen já havia assumido em Shame, e que ao contrário de outras produções que se omitem para não se comprometerem nem com um lado nem com o outro, é baseada justamente na colocação clara de todos os pontos sobre os personagens e temas, os bons e os ruins, abstendo-se apenas de apontar suas próprias preferências em relação aos mesmos, deixando esta tarefa àqueles sentados do lado de cá da tela. E não deixa de ser curioso o fato de um filme sobre escravidão dar tanta liberdade aos espectadores.


P.S. - A produção conta ainda com uma delicada e melancólica trilha de Hans Zimmer que por mais que mereça o destaque, em vários momentos lembra muito a sua composição para o filme A Origem, na faixa Time.


NOTA: 10/10 




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