quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

NINFOMANÍACA - VOLUME 1


     É preciso começar dizendo que o filme sobre o qual vou falar aqui, na verdade trata-se de um meio filme, o longa-metragem Ninfomaníaca, que originalmente tem em torno de cinco horas de duração foi obviamente dividido com fins comerciais em duas partes, sendo esta a qual assisti e sobre a qual escrevo agora, apenas a primeira metade dele. Aviso isso pois, como uma obra inacabada, há fatores que ainda não poderei falar ou avaliar com clareza, justamente devido a falta dos complementos da segunda parte, pois tecnicamente, estou aqui avaliando um filme sem parte do segundo ato ou mesmo um final. Dito isso, a outra coisa que já quero ressaltar desde cedo é que Ninfomaníaca não se trata de um filme chocante como então se acreditava que seria até mesmo seu objetivo principal enquanto projeto. O Sexo está presente de forma explícita? Depende o que você chamaria de explícito, para este que vos escreve, apesar de podermos ver muitas vezes partes íntimas, penetrações e coitos completos, estas cenas acontecem em prol da história e são tratadas por Lars von Trier de maneira tão natural que é impossível se constranger ou se espantar com quaisquer "ousadias". E ponho entre aspas porque é simplesmente idiota pensar que um ato tão natural como o sexo, praticado por praticamente todos os seres humanos (se não todos) em algum ponto de suas vidas, possa ser classificado como ousado ao ser retratado em tela. Então respondendo a esta pergunta hipotética levantada por mim mesmo, digo, se explícito para você quer dizer que poderá ver os órgãos genitais de quase todo o elenco então sim, é explícito. Porém, se com explícito você quer saber se isso será impactante, já lhe adianto: não será. O foco aqui é Joe (Charlotte Gainsbourg), uma personagem auto-depreciativa que por tratar o sexo como forma de exorcizar seus demônios acaba atribuindo ao ato um viés compulsivo. Aliás, é interessante notar que um filme onde a própria protagonista parece condenar seus atos e conduta, que de fato seriam mal vistos normalmente, consiga na verdade trazê-la sob uma perspectiva agradável e muito compreensível... Mas já estou falando demais para um primeiro parágrafo.


     Do começo: em um beco escuro e chuvoso, Seligman (Stellan Skarsgård) encontra uma desacordada Joe, que recusa-se a receber atendimento médico ou policial, já que claramente foi agredida. Sob os cuidados então do bom feitor que decidiu ajudá-la, a mulher passa a lhe contar episódios de sua vida através dos quais, segundo ela, vai provar a Selligman a pessoa ruim que é. Porém, este último parece incapaz de atribuir maldade aos atos da primeira, "se tem asas, por que não voar?" argumenta ele em certo instante. Mas Joe é uma pessoa decepcionada com as pessoas, que dirá consigo mesma, uma de suas falas (e provavelmente uma das melhores do filme) resume já desde o início "eu sempre esperei mais do pôr-do-sol, mais cores espetaculares quando o sol atinge o horizonte, este é talvez meu único pecado". Mas de fato, conforme descobrimos mais sobre a nossa personagem principal, mais atribuímos a ela uma espécie de dependência psicológica ao sexo, e o que torna mais interessante é que, ao contrário da maioria das drogas viciantes que normalmente são usadas como escapismo, o sexo, justamente o sexo, para Joe, não traz prazer algum. Pelo contrário, já em sua primeira relação a garota faz questão de associar o ato a uma fórmula matemática, ilustrando a função óbvia, única, precisa e imutável de um coito para ela.


     Os números desta fórmula, inclusive, surgem escritos literalmente e grandes sobre a cena, assim como vários outros momentos são ilustrados de alguma maneira em tela, seja com inserções de imagens, ou mesmo com caracteres explicativos sobrepostos às cenas, quase como se a narrativa fosse um grande infográfico ilustrado pelo filme em si. Isso por um lado quebra o clima muito mais pesado que a produção poderia ter, sendo um dos fatores principais que contribuem para o que falei no início do texto, sobre não chocar o espectador, já que muitas destas intervenções são, antes de necessárias para o entendimento (o que quase nunca são), inseridas com descontração e humor. E convenhamos que não se pode acusar Trier de não saber ser chocante quando quer, vide o prólogo do excepcional Anticristo. Por outra perspectiva, e até mesmo aproveitando que citei umas das melhores obras do diretor, isso retira boa parte do trabalho do espectador de compreender as nuances de seu projeto, o que é sim, parte da diversão de se assistir a um filme complexo como o próprio Anticristo; e assim, várias vezes me peguei anotando algo em meu caderno só para ter que dispensar a anotação mais tarde quando um personagem fazia questão de explicar as metáforas do longa, um montante absurdo delas sobre pescaria, aliás. 


     Em outros momentos, claro, as invencionices narrativas do cineasta são muito bem vindas e dão origem a momentos memoráveis. A comparação de uma composição musical com as características de três diferentes amantes de Joe, por exemplo, diverte ao mesmo tempo em que aprofunda mais a nossa protagonista, enquanto um plano que traz apenas uma ponta de corda tremendo enquanto sabemos que em alguma parte de sua extensão uma jovem está se masturbando, cria humor através justamente da sugestão - e novamente acho errôneo apontar o filme como sendo "explícito". Há certas divagações interessantes e que parecem perdidas do resto da trama, mas já disse também que aqui é apenas a primeira parte do longa, talvez estas venham a ser retomadas mais tarde no volume 2; uma sobre cortas as unhas é especialmente intrigante, e já adianto para quem quiser saber, eu corto primeiro as da mão direita! Mas, entre muitas de suas características notáveis, uma delas diz respeito a Lars von Trier ser um cineasta conhecido por atacar a misoginia através de suas obras, Anticristo, Melancolia, Dogville e Dançando no Escuro são exemplos claros da visão pessimista que o diretor tem em relação ao tratamento da mulher em nossa sociedade, o que, e repito, provavelmente por ser uma obra inacabada, está, se não ausente, pouco expressivo neste volume 1, embora várias vezes o diretor pareça preparar o terreno para discutir o assunto. E deveria ser discutido, como um tema recorrente e tão bem retratado em outras realizações suas, seria uma pena e até mesmo reprovável ver a maior chance do cineasta de discutir um tópico tão importante se esvair.  Por enquanto, tendo como base apenas esta primeira metade, Joe ainda é uma mulher que para escapar de seus problemas, a maioria causados por homens, precisa ironicamente de, enfim,  homens.


      Esperemos pela segunda parte de Ninfomaníaca, que inclusive tem uma prévia durante os créditos finais quase como um seriado para televisão. Desta primeira parte podemos levar dois personagens principais carismáticos, algo que, aí sim, é realmente chocante e surpreendente, tendo em vista este ser um filme de Lars von Trier; e se não algumas, pelo menos uma sequência memorável (e hilária, apesar de seu teor dramático), aquela que traz Uma Thurman protagonizando um exemplo de passividade agressiva. Se a "continuação" fizer jus ao filme visto aqui, e completar suas colocações, não vejo por que a obra não poderia ser um dez de dez.


NOTA: 9/10   

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